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  • Foto do escritorGuilherme Moro

Resenha: Sobrevivendo no Inferno - Racionais MC's

Atualizado: 29 de mai. de 2020

Hoje vamos fazer uma resenha sobre o álbum “Sobrevivendo no Inferno” da banda de rap paulistana Racionais MC’s. Ele foi lançado no ano de 1997 pelo selo Cosa Nostra e é considerado o disco de rap mais importante da história do Brasil. Em 2007, entrou na lista da Revista Rolling Stone como um dos 100 melhores discos da música brasileira, ocupando a 14ª posição, além de ter sido entregue em mãos pelo então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, como presente para o Papa Francisco, em 2015. Ainda, em 2018, foi incluído na lista de obras obrigatórias para o vestibular da UNICAMP de 2020. Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay nesse disco deram uma verdadeira aula de história aliada à poesia e à métrica de suas canções. Sobrevivendo no Inferno deve ser ouvido do começo ao fim como se fosse um filme.


Contexto

“60% dos jovens de periferia Sem antecedentes criminais Já sofreram violência policial

A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras Nas universidades brasileiras Apenas 2% dos alunos são negros

A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo Aqui quem fala é Primo Preto mais um sobrevivente”

Esse é o Brasil em 1997, 9 anos depois da Constituição de 1988, um país ainda marcado por resquícios do regime militar (1964 – 1985). Um garoto da periferia tinha 12 vezes mais chances de morrer do que um garoto de classe média, a violência policial era constante nas favelas e guetos da cidade de São Paulo. E é nesse contexto que os Racionais MC’s fizeram esse clássico.

Nesse disco, os Racionais vão contra a impunidade do sistema, denunciam o descaso da sociedade em geral com os moradores da periferia e escancararam o racismo impregnado na sociedade brasileira. O álbum é um divisor de águas no rap brasileiro e, principalmente, na carreira da banda, que entra pela primeira vez no Mainstream, vendendo mais de um milhão de cópias com seu próprio selo independente, tocando em rádios e com um clipe nas paradas da MTV. Outra coisa que fica clara são as referências bíblicas presentes no disco, como na capa e nas letras das músicas.


Faixa a Faixa


Jorge da Capadócia

Essa música é uma regravação de "Jorge da Capadócia" composta por Jorge Ben. Eles pegaram a letra da canção e colocaram sobre a base da música "Ike's Rap II" do cantor americano Isaac Hayes. Ela abre o disco como se fosse uma oração para iniciar todo o caminho que eles irão percorrer para sobreviver no inferno e para mostrar que a religiosidade vai ser algo presente no decorrer do disco.


Gênesis

"Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor

O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta

Eu?! Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta

Eu tô tentando sobreviver no inferno"


Essa canção é uma vinheta de menos de 30 segundos que cria um ambiente hostil onde Mano Brown se coloca no lugar do personagem que está tentando sobreviver no inferno (que no contexto do álbum é a periferia). Ele diz que Deus dá as coisas boas ("Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor"), mas o homem as transforma em coisas ruins ("O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta"). Para ele sobreviver no inferno, Brown diz que tem "Uma bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta"


Capítulo 4, Versículo 3

A música começa com uma voz dizendo o texto que eu coloquei no início desse post mostrando os dados alarmantes que perseguem todo negro no final da década de 90. Eles usam isso no disco para causar um choque no ouvinte e expor essa realidade incômoda que até hoje persiste. Para se ter uma ideia, a única estatística que mudou, 23 anos após o lançamento do disco, foi a porcentagem de negros nas universidades, que subiu para 12,8% após o estabelecimento do programa de cotas, percentual ainda muito abaixo do ideal. A letra da canção mostra Brown revoltado com toda essa situação e que, para mudar essa realidade e abrir os olhos da sociedade "da ponte pra lá", vai usar sua maior arma, que não tem nada a ver com uma 12 mm debaixo de sua blusa. Sua arma é somente sua palavra com rimas e métricas perfeitas capazes de incomodar todo e qualquer ouvinte da alta sociedade brasileira ("Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição"). Brown agradece a Deus por ter fugido da estatística e nunca ter sido um negro que se envolveu com a criminalidade e que buscou seu lugar ao sol de maneira legal. Ele traça um painel das várias possibilidades e caminhos que um jovem negro pode percorrer no Brasil.


To Ouvindo Alguém me Chamar

É a canção mais extensa do disco, com mais de 11 minutos de duração. Ela conta com um clima tenso e sinistro criado pelo KL Jay, para a qual ele utilizou como base a canção Charisma do trompetista estadunidense Tom Browne. A letra da música conta a história de um jovem que vive na periferia de São Paulo e é uma espécie de aprendiz do Guina, que corresponde a um tipo de líder entre os bandidos. O jovem tem um irmão que tem um sonho de ser doutor e dar uma vida melhor para a família de maneira honesta. O personagem principal dessa história promete a si mesmo que quando sair daquela vida que estava vivendo, vai mudar, porém isso não acontece, já que Guina de dentro da cadeia dá ordens para executar o jovem marginal. Ao fim da música, pouco antes de morrer baleado, ele chega à conclusão de que a vida no crime não compensa.


Rapaz Comum

A letra conta a história de um rapaz morador da favela que também acaba sendo assassinado. A canção vai até o momento do velório do rapaz, quando a mãe vela o filho morto no caixão. O interessante é que a letra da música deixa subtendida a maneira como o rapaz foi morto; isso foi feito propositalmente para mostrar que na favela a morte é algo muito comum ("Morte aqui é natural, é comum de se ver. Não quero ter que achar normal ver um mano meu coberto de jornal!"). Nessa faixa, é utilizado um sample da música Black Steel In The Hour Of Chaos do grupo norte-americano "Public Enemy".

...

É exclusivamente a única canção instrumental do disco. Um blues calmo feito para abaixar a adrenalina presente no álbum, porém, ao fim da música, há uma rajada de tiros que toma conta do ambiente, mostrando que na favela a violência não para.


Diário de Um Detento

Essa canção já virou uma espécie de hino e, na época de seu lançamento, tocou em todas as rádios do Brasil mesmo com seus mais de 8 minutos de duração, se tornando um dos marcos da música brasileira. Ela é feita em alusão ao Massacre do Carandiru (1992), quando 111 presos foram brutalmente assassinados pelo choque de São Paulo. A letra é extremamente autoexplicativa, trazendo todas as falhas do sistema carcerário brasileiro na visão do detento. A música foi feita com a contribuição do ex-detento Jocenir, que entregou a letra para Mano Brown.


Periferia é Periferia

Nessa canção, os Racionais relatam que, independente da cidade, estado ou país, a periferia é sempre igual. Também é relatado que a droga é uma das principais culpadas pelo estado em que se encontram as periferias. Os moradores da periferia têm sim sua culpa em toda essa história, mas os verdadeiros culpados são os grandes poderosos que não sofrem com aquilo diariamente ("Vem pra cá de avião ou pelo aeroporto ou cais/não conheço pobre dono de aeroporto e cais").


Qual Mentira Vou Acreditar

Essa canção é um momento de quebra no disco. Mostra que mesmo com toda a violência relatada nas músicas anteriores, os moradores de periferia ainda têm seus momentos de diversão, como, nesse caso, a ida para a balada. Mas nem tudo são flores, enquadros da polícia e falsos amigos são coisas também relatadas na música, ou seja, quem sobrevive no inferno não tem paz.


Mágico de Oz

Essa música fala sobre um menor de idade que se envolve com o tráfico de drogas e vê esse crime como sua única saída para conseguir ganhar um dinheiro e viver a vida em um lugar onde desde cedo os jovens aprendem a ver os policiais e a sociedade da "ponte pra lá" como inimigos.


Formula Mágica da Paz

A música retrata a vida de uma pessoa sem perspectiva na periferia, mas que não desiste de encontrar uma solução.


"(Eu vou procurar, sei que vou encontrar)

(Eu vou procurar, eu vou procurar)

(Você não bota uma fé, mas eu vou atrás)

Da minha fórmula mágica da paz"


Salve

A letra da música é um agradecimento às quebradas visitadas pelos Racionais e aos irmãos do presídio. Ela também faz uma referência ao Jesus Histórico e ainda espanta quem quer o mal deles. É praticamente um resumo de quem são os Racionais MC's.


Legado

"Sobrevivendo no Inferno" em 1997 foi um marco na história da música brasileira, escancarando preconceitos, quebrando tabus e fazendo uma narrativa como nunca antes houve na história do Brasil. Apesar de ser um disco mais narrativo e menos agressivo, Brown, em entrevista para a Red Bull Station, usa as seguintes palavras para descrever o momento da banda após o lançamento do álbum: "Foi como o nome do disco, um inferno! Repetir as palavras muitas vezes, alguma coisa materializa". A banda começou a viver aquele caos relatado nas músicas diariamente, Brown diz também que o disco era "muito pesado". "Sobrevivendo no Inferno" segue sendo um disco atual e ainda causa incômodo aos ouvidos de quem não está preparado para tal peso e verdade relatados em suas canções.


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