Quem acompanha as músicas em alta no Brasil, tanto nas plataformas de música, como Spotify ou Amazon Music, quanto na televisão, como nas trilhas sonoras de novelas ou em reality shows, percebe a intensa presença de rimas e poesias nas letras. Esses elementos são característicos dos gêneros rap e trap, que estão em constante ascensão no país.
O rap nacional surgiu como um objeto de identificação cultural, tematizando a vida periférica e confrontando a realidade discriminatória. Por conter um discurso de contestação que ameaçava o status quo da década de 90, a sociedade da época tentava constantemente deslegitimar o rap como arte, usando até razões estéticas do gênero, por exemplo, o fato das canções serem recitadas, e não cantadas, como justificativa. Com o passar do tempo, embora o teor crítico social permanecesse, o gênero musical foi mudando, diminuindo o que era considerado pelos críticos como agressivo. Embora a técnica de samplear seja antiga, sendo usada já em 1993, na na faixa “O Homem na Estrada” de Racionais MC’s, os samples começaram a ser usados com mais frequência, especialmente com mais trechos do samba e da MPB.
Lifestyle Fake, da Recayd Mob, sampleando a canção O Meu Guri, de Chico Buarque
Inspiração, de CHS e Luccas Carlos, sampleando Depois da Queda, de Roberto Menescal
O aumento na participação das mulheres no rap também transformou a cena. Já “nas antigas”, próximo aos anos 2000, o destaque feminino em um ambiente predominantemente masculino começou com Negra Li. Com a presença feminina, as canções começaram a associar gênero e cor, e assim o empoderamento feminino ganhou força. Além das composições de resistência, a mulheres, por exemplo, Flora Matos, trouxerem para o gênero um jeito gangsta romântico de cantar, quebrando a ideia de que abordar experiências afetivas deve estar acompanhado de melodias suaves e delicadas. Também, algumas das figuras femininas que surgiram na cena, como Azzy, ganharam popularidade participando de edições do Poesia Acústica.
Diretoria, de Tasha & Tracie
Me Ame em Miami, de Flora Matos
Junto a isso, com a chegada do trap, que nasceu na cidade de Atlanta, no Estados Unidos, por volta de 2000, o som se tornou mais começou a contar com o uso frequente de sintetizadores e de efeitos que distorcem as vozes, o chamado autotune.
No Brasil, o gênero caiu no gosto do público entre 2016 e 2017, quando houve o aumento de 61% no consumo das produções no Spotify, e nomes paulistas, como Recayd Mob e Raffa Moreira, que deram continuidade ao reduto do rap na capital, e até artistas de outros estados, por exemplo o cearense Matuê e o carioca Filipe Ret, viralizaram.
As letras continuam tratando da desigualdade social, mas o uso de drogas, ostentação e poder, comuns ao funk, marcam igual presença nas canções. Além disso, no gênero, cantar sobre joias e roupas de marcam ultrapassa a ostentação, e também representam vitória e reconhecimento, especialmente da cultura negra.
Gucci, Prada - Orusm, Borges, Chefin, Ajaxx
Tropa da Lacoste - Kyan
A popularidade do gênero estimulou, até mesmo, o surgimento de gravadora especializadas no gênero, como a Pinneaple Storm, conhecida pelo projeto Poesia Acústica, e a Mainstreet, famosa por produzir grandes nomes da cena, como Orochi e Chefin.
Assim, embora, em 2002, Racionais MC’s tenha criticado quem cultiva a cultura do rap sem representá-la, cantando “Não adiantar querer, tem que ser, tem que pá / O mundo é diferente da ponte pra cá”, a indústria da música transformou o rap, especialmente usando os elementos do trap a seu favor, em um produto midiático, que ultrapassa questões raciais e de classe, e perde o estigma marginalizado para se tornar viral.