“Precisa de chave a porta que abre pra dentro”, o verso ecoa continuamente chamando para uma audição interiorizada e sensível. Assim, o rock-blues “A Chave” abre o primeiro e único disco solo de Beni Borja, No meio do caminho, a ser lançado postumamente no dia 21 de fevereiro, quando o autor completaria 61 anos de vida.
Tudo parece fazer um sentido surpreendente.
Fundador do Kid Abelha, coautor de hits do grupo como Fixação e baterista de sua primeira formação, Beni (Carlos Beni Carvalho de Oliveira Borja) sempre rejeitou o título de “roqueiro”. Era músico, criador sobretudo. Na sua riquíssima playlist no Spotfy (https://spoti.fi/3rE879F), convivem Jacques Brel, Deolinda e Jards Macalé; Herbie Mann, Cacique & Pajé e Vo Kuch; Frank Zappa, Lô Borges e Joaquin Sabina; Dave Burbeck, John Cale e Art Popular; Babatunda Olatunji, Pedro Abrunhosa e Itamar Assunção, entre centenas de outros. Esse largo espectro manifestava-se também no produtor criativo que Beni foi, com passagens pelas gravadoras Universal Music, Sony Music, BMG, EMI Music e Warner e trabalhos realizados com artistas como Fernanda Abreu (SLA Radical Dance Club), Farofa Carioca (Moro no Brasil), Celso Blues Boy (Celso Blues Boy) e até o coro do Mosteiro de São Bento da Bahia (Inspirações do Claustro).
Carinhosamente chamado de “guru” por alguns, ao menos até aqui Beni pertenceu, sobretudo, àquela classe fundamental de artistas mais conhecidos e influentes em seu próprio meio do que reconhecidos pelo grande público; um tipo de gente muito interessada em arte e pouco, em holofotes. Pesquisava incessantemente, lia vorazmente, de tudo e sobre tudo, apontava novas questões, fossem técnicas, artísticas no sentido mais amplo, filosóficas ou comerciais, e abria caminho. Descobriu talentos como Biquini Cavadão e Gabriel O Pensador. Criou seu próprio selo, Psicotronica, no início dos anos 2000, e por ele lançou Picassos Falsos (Novo Mundo) e Cris Braun (Atemporal). Sabia colocar seu talento a serviço do talento alheio. Talvez por isso, tenha se deixado ficar nos bastidores por muito tempo.
No Meio do Caminho, fruto de uma década de trabalho, era, afinal, o seu projeto de expressão exclusivamente pessoal, uma saga sobre a qual a única coisa certa era que seria radicalmente autoral, marcada por autêntica liberdade criativa. Essa é provavelmente a razão pela qual, durante anos, Beni insistiu em fazer tudo sozinho, gravando todos os instrumentos e empilhando camadas musicais em seu estúdio particular.
Em 2016, o repertório estava pronto, e o compositor, preparado para cantá-lo, mas a produção se arrastava com muitas indefinições. Foi quando o baixista Rian Batista (Cidadão Instigado), casado com a filha de Beni, a artista plástica e também cantora e compositora Julia Debasse, entrou em cena: “Casa de ferreiro, espeto de pau. O Beni, que ajudou tantos artistas a colocar seus projetos de pé, não estava conseguindo fazer isso por si mesmo. Era um caos cheio de indecisões, e eu lhe disse o óbvio”. O óbvio, no caso, era reunir uma banda, tocar e criar os arranjos a partir das sessões. Assim foi feito, e, em algumas semanas, nove das dez faixas do disco estavam gravadas: Beni, cantando e tocando violões e guitarras, Sérgio Diab (Stratoman), nas guitarras, violões e vocais de apoio, Bruno Wanderley, na bateria, e Rian, no baixo e vocais. Apenas “Matemática”, com a sua pegada latina, manteve- se na versão solitária do autor.
No Meio do Caminho apresenta a digestão pessoal de um conhecimento musical sem fronteiras. Corais gospel, beats eletrônicos e refrões de MPB, melodias nordestinas e riffs pesados combinam-se, sem artificialismos, num resultado onde o que sobressai, de fato, é o apreço pela canção e seus ourives mais uma chave para entender o disco. Com temas e letras que escapam à trivialidade, as 10 canções do álbum compõem um extraordinário painel do atual massacre das nossas subjetividades, submetidas a fórmulas compradas prontas.
O rock áspero “Os sentidos do verbo ser” soa como um hino de resistência à construção de identidades a partir do consumo “Não tenho, não quero ter./Não tenho, eu não preciso ter./ Eu sou, e isso é” , enquanto “Cacarecos”, com introdução inspirada no som de ídolos malineses como Ali Farka Touré e o grupo tuaregue Tinariwen, expõe o estrago do consumismo desenfreado: “Eu acumulo trambolhos, meu lixo existencial”. A tola e acachapante redução da vida a dados estatísticos aparece em “Matemática”, com Beni cantando, taciturno: “Desconsiderei as variáveis que não cabem na equação”. Na irônica “Entre na fila”, parceria com Paula Toller, o alvo é a normatização burocrática que nos transforma em números alinhados à espera de recompensa pela disciplina. Entre guitarras distorcidas, “Tanto Bandido” aponta o dedo para determinismos que ignoram o peso dos apetites pessoais numa divisão melódica que evoca Paul Simon, e o blues-rock “Estrela do Norte” encarna o drama dos brasileiros espalhados pelo mundo, vivendo entre as promessas de prosperidade e a afirmação do seu próprio modo de ser: “Eu vivo dentro de um filme/falado em língua estrangeira./ Cruzei o oceano para me olhar no espelho”.
O fundo do poço de todos os constrangimentos à realização pessoal chega pungente no rock clássico “Mergulho”, a primeira faixa de trabalho do álbum: “Abro bem os olhos./ Respiro fundo. /O sol ainda vai entrar /nesse meu quarto escuro”. Muito sugestivamente, a resposta final do compositor a todas as fórmulas chega luminosa, com pegada R&B, na única canção de amor do disco, “Perguntas”. A guitarra de Diab tremula, e Beni professa seu credo: “Eu acredito no que dizem seus braços/ quando estreitam o espaço entre nós”.
No início de 2020, o disco, com produção assinada por Rian e Diab, estava praticamente pronto, mas a pandemia chegou e adiou o lançamento. Beni finalizou e batizou o álbum e escolheu para a capa uma pintura da filha; um carro quebrado no meio da estrada e um homem que parece cogitar aflito sobre o que fazer.
Em dezembro de 2021, ele se preparava para, afinal, apresentar a obra ao público no início deste ano.
Então, na antevéspera do Natal, literalmente no meio do caminho, no trânsito, um infarto súbito levou Beni em segundos, mesmo tendo sido imediatamente socorrido.
Diferente de discos de artistas que tinham consciência de viver seus últimos dias, como o Black Star, de David Bowie, ou o Pink Moon, de Nick Drake, Beni não fazia ideia do trágico futuro próximo. No Meio do Caminho celebra a vida e apresenta um capítulo crucial de uma carreira sempre em mutação profissional, artística e musical. Tudo está refletido em um álbum plural e inclassificável, ao qual a prematura morte do autor confere um ar quase místico. Na faixa-título, com pedal baixo, sua voz, jamais tão dele como agora, continua a convocar à aventura da vida: “Embaralhe as cartas novamente./ Quem sabe o que elas vão dizer?”.
Os produtores e a família de Beni prometem levar No Meio do Caminho ao palco para celebrar a vida desse artista que nos deixou tão cedo, mas sobrevive eternamente em sua própria música. Viva Beni!
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