Do pior ao melhor: análise da discografia do Ira!
- Filipe Figueiredo e Guilherme Moro

- 17 de out.
- 11 min de leitura
O Ira! ocupa em uma posição de respeito no cenário do rock nacional como um dos panteões da geração de artistas que explodiram nos anos 1980. Com mais de quatro décadas de carreira, cinco milhões de discos vendidos, 13 álbuns de estúdio, dois álbuns ao vivo e inúmeros sucessos, o grupo ostenta uma das discografias mais extensas entre os que surgiram naquele período.
Diante dos fatos, a reportagem do Música Boa, em colaboração com a fanpage Acervo do Ira!, se encarregou de cumprir a ingrata missão de realizar um ranking enumerando do pior ao melhor disco lançado pelo grupo. Vem conosco!

13º Você Não Sabe Quem Eu Sou (1998)
Mesmo ocupando a última posição desta lista, é necessário abrir esse parágrafo afirmando que "Você Não Sabe Quem Eu Sou" tem seus méritos. No entanto, talvez seja o álbum menos palatável da fase clássica do Ira!
Sua sonoridade e estética são totalmente norteadas por influências clubbers e eletrônicas advindas do guitarrista e centro criativo do grupo, Edgard Sacandurra. À época, ele havia lançado "Benzina" (1996) em sua carreira solo. O álbum tem bons momentos como nas releituras de "Miss Lexotan" de Júpiter Maça, e de "I Can’t Explain (Eu não sei)" do The Who. Outro destaque positivo é "Correnteza", que conta um solo de guitarra inspirado de Scandurra.
Porém, o álbum derrapa na maioria das músicas, principalmente pelos excessos das influências eletrônicas que culminaram em estranhezas como "Justiça Militar, Justiça Civil" e "Descendo o Mississipi". A primeira citada rendeu uma apresentação bizarra no programa Bem Brasil da TV Cultura, em que um homem realiza a percussão da canção batendo em uma máquina de lavar velha e pichada. A verdade é que o oitavo álbum de inéditas do grupo é um ponto de interrogação na discografia.
12º Clandestino (1990)
Se o citado na posição anterior peca pelos excessos, "Clandestino" é exageradamente simplório. É que o repertório do disco entrou em rota de colisão com o excelente álbum "Amigos Invísiveis (1989)", o primeiro da discografia solo de Edgard Scandurra. O guitarrista dedicou grande parte de seu tempo, repertório e inspiração ao projeto paralelo. Com isso, "Clandestino" enfrentou uma escassez criativa do letrista, que resgatou várias canções do início do Ira, à época sem exclamação, e até canções do Subúrbio, o embrião do grupo. São os casos de "Nasci em 62" e da faixa título.
Apesar de bons momentos como nas baladas "Tarde Vazia" e "Boneca de Cera", e sons que marcavam a criatividade e identidade rítmica do baterista André Jung como em "O Dia, a Semana e o Mês", a falta de coesão estrutural de ideais, e faixas como "Patroa" e "Melissa", que nada lembram o punch e a criatividade do grupo, fizeram o disco fracassar comercialmente, parando nas 30 mil cópias vendidas. Foi o início do desgaste com a gravadora WEA.
11º Entre Seus Rins (2001)
"Entre Seus Rins" é o décimo álbum de inéditas do grupo, lançado pela Abril Music em 2001. A obra surfa (e muito bem) na onda da nova geração que conheceu o Ira!, através de seus álbuns antecessores como "Isso é Amor" e "MTV Ao Vivo".
Apesar do frescor que o grupo empregou em canções como "Um Homem Só", bela releitura de Frank George em "Homem de Neanderthal", a porrada intrínseca de "O Bom e Velho Rock’n’Roll", além da faixa-título, o álbum sofreu com duas situações: a primeira foi uma briga de executivos da Abril e da Deck, selos parceiros que encerraram a sociedade durante a divulgação, o que impactou direto nas vendas. A segunda situação é o evidente impasse de ideias, que se mostram desconexas no contexto do repertório álbum. Outra problemática de "Entre Seus Rins" é que ele é excessivamente extenso e, com quatro ou cinco músicas a menos, seria um dos grandes discos do Ira!
10º Música Calma Para Pessoas Nervosas (1993)
Para muitos, o “patinho feio” da discografia do grupo. Inclusive para o próprio Nasi, que usa o termo para se referir ao disco em sua biografia. O sexto álbum é um encerramento de ciclo dentro da WEA, talvez deflagrando o pior momento comercial de sua história.
Mas é justamente na crueza em que "Música Calma" se destaca. Ele tem um espírito garageiro e nervoso que seria aperfeiçoado no álbum seguinte, o "7". O repertório tem boas composições como "Arrastão", "O Homem é Esperto Mas a Morte é Mais" e "Pai Nosso da Terra", um poema perdido de Raul Seixas.
No entanto, a obra esbarra na precariedade de sua produção. A mixagem limita a experiência das músicas e escancara o desinteresse mútuo do quarteto, que já começava a ter brigas internas, aliado ao abandono da gravadora, que não tinha pretenções de lançar novas faixas do grupo paulistano.
O resultado é um fracasso comecial.; Foram pouco mais de 1,8 mil cópias vendidas do LP na época. Fica de curiosidade de que esse foi primeiro álbum a apresentar um cover cantado em inglês pelo Ira!, em versão da maravilhosa "She Smilled Sweetly" dos Rolling Stones.
9º IRA (2020)
O último álbum de inéditas do grupo e o único lançado com a nova cozinha, formada por Johnny Boy e Evaristo Pádua, que assumiram a “responsa” de substituir André e Gaspa, membros que acompanharam Nasi e Edgard por 22 anos ininterruptos.
O álbum resgata o frescor mod presente nos dois primeiros álbuns de estúdio. Um dos bons momentos é o single "O Amor Também Faz Errar", que apresenta uma letra muito característica do estilo de composição de Scandurra e conta com um dos riffs mais legais criados pelo guitarrista. Também se destacam "Mulheres a Frente da Tropa", que ganha vocais de Edgard, além de "Efeito Dominó", feat com Virginie, ex-vocalista do Metrô. É a música mais longa da discografia do Ira!
Muita gente não deu a devida atenção ao álbum, lançado durante a pandemia. No entanto, é um trabalho sólido, com boas composições que podem surpreender os mais resistentes e saudosistas.
8º Invisível DJ (2007)
Agora o ranking fica mais interessante. O que separa os álbuns daqui até o quinto lugar, são detalhes mínimos e até convicções pessoais, tornando a tarefa ainda mais ingrata. "Invisível DJ" é 11º disco de inéditas do grupo. Apesar da química zero que rolava num Ira! exausto após a turnê do "Acústico MTV", que recolocou a banda entre as principais do país, o álbum é recheado de porradas como "Sem Saber Aonde Ir", o excelente cover de "Feito Gente", retirado da discografia de Walter Franco, além da própria faixa-título e "A Saga", parceria de Edgard com Arnaldo Antunes
Também estão no repertório excelentes baladas como "Eu Vou Tentar", escrita por Rodrigo Coala e imposta ao grupo pelo produtor Rick Bonadio, e "Tudo de Mim", que começa intimista e explode em dueto de Nasi e Edgard no refrão.
Apesar da ideia do disco ser muito bem concebida, as composições estarem estruturadas e o som ser um dos melhores já tirados pelos integrantes em toda a discografia, os desententimentos entre o quarteto atrapalharam a divulgação do álbum. Tanto que poucos meses após o seu lançamento, o grupo saiu dos cadernos de cultura e passou a figurar em páginas policiais e de fofoca.
O fato transformou um disco de grande potencial em apenas mais um tímido trabalha no meio da discografia. A vendas pararam nas 25 mil cópias. A obra ainda conta com um DVD em que as faixas são apresentadas ao vivo. Nos extras, há dois documentários: um sobre a história do Ira! e outro sobre o processo de elaboração do álbum, onde o clima tenso é evidente nas imagens.
7º "7" (1996)
Sem demagogia de tentar emplacar um “easter egg” na matéria, "7", sétimo álbum de estúdio do Ira!, ficou na sétima colocação. Após a tour no Japão em 1995, a banda ganhou sobrevida, com uma nova gravadora, a Paradoxx Music, que proporcionou tempo e espaço para eles lapidarem suas ideias já bem direcionadas.
O resultado é um disco pesado, denso, com aquele espírito garageiro e nervoso que se desenvolvia como um protótipo no "Música Calma Para Pessoar Nervosas". Em "7", ele ganhou forma em "Na Minha Mente", e nas questionadoras "É Assim Que Me Querem", e "Difícil é Viver", que misturam peso e ginga que só o Ira! sabia entregar.
A banda parecia estar pronta para os anos que viriam. Outros destaques são o potente cover de "Me Perco nesse Tempo", das inexoráveis As Mercenárias, além das baladas "Eu Quero Sempre Mais" e "Girassol", que ganhariam destaque nacional oito anos depois no lançamento do "Acústico MTV" (2004).
6º Meninos da Rua Paulo (1991)
O quinto álbum de inéditas do grupo é uma verdadeira ode ao amor rebelde e juvenil. Com um frescor diferente do que foi apresentado nos álbuns da década de 1980, a obra mostra uma banda irada, porém madura, lidando com questões mais intimistas, complexas, mas que ao mesmo tempo buscava refúgio em tempos mais fáceis como o nome do álbum sugere. O título é um homônimo do livro escrito em 1906, pelo húngaro Ferenc Molnar.
O álbum é dotado de ótimos momentos. "Tolo dos Tolos" soa como uma releitura mais madura de "Tolices". Também é possível encontrar a reflexiva "Um Dia como Hoje", além da hipocondríaca e paulistana "Prisão das Ruas". Talvez a melancólica "A Etiópia e Meus Problemas" destoe um pouco do restante do álbum, mas tem seu brilho.
Foi mais um álbum com potencial que sofreu com a divulgação da WEA. Ele reflete um momento inspirado de Edgard, que o escreveu quase na totalidade para uma garota. Apesar de cultuado pela base de fãs, o álbum foi um fracasso comercial. A música de melhor repercução foi "Você Ainda Pode Sonhar", cover da versão de "Lucy in the Sky With Diamonds" feita por Raul Seixas em seu disco de estreia, "Raulzito e os Panteras" (1967).
5º Mudança de Comportamento (1985)
O primeiro álbum de estúdio dos paulistanos, que estreavam sua formação clássica com Gaspa e André, esbarra em um título sugestivo. Era uma banda em processo de mudança. O nome, agora com exclamação, a lírica voltada para os anseios e desejos de uma juventude inquieta, além da estilística voltada ao mod inglês de bandas como The Jam.
É até díficil apontar faixas nesse álbum, já que é um clássico de cabo a rabo. O destaque comercial fica para a faixa "Núcleo Base", hino contra o alistamento militar, que fez burburinho no Rio Grande do Sul e ajudou a alavancar as vendagens do LP para próximo das 60 mil cópias.
Outros destaques são "Tolices" uma balada sessentista de um amor do outro lado da rua, a incrível "Saída", um grito de guerra sútil e elegante contra o sistema cada vez mais sufocante, além da excelente e soturna "Como Os Ponteiros De Um Relógio", está já com sonoridade mais sombria e introspectiva em meio às baladas.
É uma obra que demonstra a química que existia entre os quatro, mesmo com apenas dois meses de ensaio. Destaque para a polida produção de Pena Schmidt, que deu ao álbum um toque a mais, sendo inclusive melhor produzido que seu irmão mais novo e mais famoso, "Vivendo e Não Aprendendo".
4º Isso é Amor (1999)
O disco marca o início das pazes do Ira! com o mundo pop. Se seu antecessor figura na última posição deste ranking devido aos seus excessos, "Isso é o Amor" aposta em releituras de outros compositores, com decisões extremamente acertadas no repertório e arranjos atentos.
"Bebendo Vinho" de Wander Wildner abre o baile com uma versão que passaria a ser um dos hits do grupo. Na sequência "Teorema" ganha mescla de acústico e plugado. "Telefone", que vira melancólica em verso transposto para tom menor, fica charmosa com participação de Fernanda Takai. "Chorando no Campo" transformada em uma mistura de rockabilly e punk rock, dá peso à lista. Já "Flashback" é uma das lindas baladas do álbum, com improvável versão. São releituras de Legião Urbana, Gang 90, Lobão e Dalto. Todas dos anos 1980, mas com distintas características, bem diferentes do Ira!, inclusive. A banda dá show de originalidade em suas interpretações.
Aqui, Edgard Scandurra se mostra em sintonia fina com Nasi, que encontra o auge da sua voz. A banda estava afiada. Impossível não citar "Um Girassol da Cor de Seu Cabelo", em feat com Samuel Rosa, e "Jorge Maravilha", do heterônimo de Chico Buarque, Julinho da Adelaide.
"Isso é Amor" consolidou-se com o tempo como uma das obras mais honestas e coesas do Ira!, um álbum que envelheceu bem e sintetiza a alma da banda no fim da década de 1990.
O álbum vendeu cerca de 100 mil cópias, um número respeitável pra época, principalmente considerando que o rock nacional já não vivia o mesmo auge dos anos 1980 e que o Ira! estava fora do circuito das grandes gravadoras há um tempo. Era o prenúncio do que estaria por vir.
3º Acústico MTV (2004)
A consagração definitiva. O Acústico MTV levou o Ira! de volta ao topo e apresentou a banda a uma nova geração. Com arranjos que valorizaram as letras e a potência emocional das músicas, o projeto marcou o auge do quarteto em todos os tempos.
Clássicos como “Flores em Você”, “Dias de Luta” e “Envelheço na Cidade” estiveram no repertório. Mas os destaque foram os lados B, músicas pouco aproveitadas de outros álbuns viraram sucessos sem precedentes. São os casos de "O Girassol", "Eu Quero Sempre Mais" e "Tarde Vazia". As participações certeiras de Pitty, Samuel Rosa e Os Paralamas do Sucesso são trunfos. O disco mostrou toda a força e versatilidade do repertório do grupo.
Os arranjos são um capítulo à parte. Tudo soa limpo, preciso e ao mesmo tempo profundamente humano. A banda, extremamente afiada, contava com nomes de peso como Thiago Castanho (Charlie Brown Jr.) nos violões e a percussionista Michelle Abu.
Com mais de 300 mil cópias vendidas, o álbum foi um sucesso. Um renascimento comercial e afetivo que levou o Ira! a uma turnê nacional gigantesca, com shows lotados de Norte a Sul do país. O público era misto: veteranos dos anos 1980, novos fãs trazidos pela MTV e, mais do que isso, a massa que via a cara do quarteto semanalmente na televisão.
As inéditas também merecem destaque, como "Muito Além", Pra Ficar Comigo" e "Por Amor"
2º Vivendo e Não Aprendendo (1986)
Em 1986, o Brasil estava respirando transformações: redemocratização, presa inflação, choque cultural, vontade de mudança. O Ira! vinha de Mudança de Comportamento, disco intenso, cru, cheio de mod, ritmo, influência britânica. Agora, com "Vivendo e Não Aprendendo", eles mantêm essa raiz, mas amadurecem em letras que reconhecem feridas, que desejam fuga mas também aceitam o peso de estar vivo. Existe uma urgência: você cresce, erra, tenta aprender.
“Envelheço na Cidade”, “Gritos na Multidão”, “Dias de Luta”, são todas faixas que se tornaram atemporais, capazes de traduzir o espírito de uma geração inteira. "Flores em Você" é emblemática. O quarteto de cordas (Jaques Morelenbaum, Michel Bessler, Bernardo Bessler) traz uma densidade orquestral que contrasta com o restante do disco, mas dialoga com a simplicidade melódica da guitarra de Edgard e o vocal de Nasi. A influência dos Beatles em “Eleanor Rigby” e a atmosfera de “Smithers-Jones” do The Jam aparecem nessa canção.
A produção foi tudo, menos tranquila. Gravado no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, o álbum acabou marcado por choques criativos entre a banda e o produtor Liminha. O Ira! queria preservar sua identidade crua, inspirada no rock britânico de The Jam e Clash. Liminha, por outro lado, defendia um som mais extravagante, como o do Rush. As divergências foram tantas que a mixagem acabou sendo transferida para São Paulo, sob supervisão de Pena Schmidt, que buscou equilibrar as vontades e entregar o álbum sem perder a essência.
Com mais de 150 mil cópias vendidas, o álbum colocou o Ira! definitivamente no mapa e consolidou o rock paulista como uma força criativa no país.
1º Psicoacústica (1988)
Incompreendido no lançamento e reverenciado com o passar dos anos, Psicoacústica é o disco mais ousado, inventivo e corajoso do Ira! Em 1988, quando todos esperavam um sucessor acessível de "Vivendo e Não Aprendendo", o grupo entregou uma viagem sonora que misturava rock, hip-hop, psicodelia e experimentação pura. Foi o oposto do que a gravadora sonhava e, justamente por isso, tornou-se uma obra-prima.
Produzido de forma independente pela própria banda, com o técnico Paulo Junqueiro, que depois se tornaria presidente da Sony Music, o álbum nasceu sem amarras, apenas com a vontade de explorar “outros sons, outras batidas e outras pulsações”. Nasi e André Jung traziam influências do rap e do hip-hop, e Scandurra mergulhava em timbres e texturas que soavam quase alienígenas para o rock brasileiro da época. O resultado foi um álbum conceitual, urbano e delirante, que desafiava qualquer convenção do gênero.
“Rubro Zorro” abre o disco como um faroeste sujo do terceiro mundo. O baixo de Gaspa é pulsante, guitarras cortantes e o vocal de Nasi encarna um anti-herói. Em “Poder, Sorriso, Fama”, Edgard expõe sua alma em versos ácidos e guitarras que soam como fantasmas no concreto. “Pegue Essa Arma” transforma a palavra em munição e reafirma o DNA contestador do Ira! E “Advogado do Diabo”, com o dueto entre Nasi e André Jung, é talvez o momento mais hipnótico e ousado de toda a discografia do grupo, que serviu como referência para grupos como Nação Zumbi.
Na época, "Psicoacústica" foi massacrado pela crítica e ignorado pelo público, mas o tempo fez justiça: hoje é visto como um dos trabalhos mais importantes do rock brasileiro, citado por artistas de várias gerações e incluído pela Rolling Stone Brasil entre os 100 melhores discos nacionais de todos os tempos.
A lenda das “latas de maconha” encontradas no litoral em 1987, que inspiraram o processo criativo, só reforça o caráter psicodélico e libertário do projeto. É o disco da mente aberta, da rebeldia artística e da recusa em se encaixar. O melhor do Ira!








